A assistência à saúde mental dos piauienses mudou para melhor. Se antes os pacientes mentais viviam internados em hospitais psiquiátricos, em regime de internato que chegava a durar décadas, hoje eles recebem tratamento em um centro especializado durante um turno e passam o resto do tempo com a família. Os avanços ocorridos na saúde mental no Estado se ajustam à reforma psiquiátrica, incentivada pelo Governo Federal. O Governo do Piauí, através da Secretaria de Saúde (Sesapi), criou a Gerência de Atenção à Saúde Mental, em março do ano passado. Desde então, foram abertos 14 Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Esses centros funcionam em vários municípios, dois deles em Teresina. Outros estão sendo implantados. Nesta entrevista, a gerente de Atenção à Saúde Mental, da Sesapi, Édina de Melo Castelo Branco, fala sobre esses avanços e como eles se tornaram possíveis. Assistente social com especialização em saúde mental, ela conta com entusiasmo como o Governo conseguiu, no curto prazo de um ano, implementar 24 ações que contribuem para que os pacientes mentais se sintam incluídos e exerçam sua cidadania. Uma dessas ações é o Plano Estadual de Saúde Mental, aprovado em julho do ano passado. Portal – O Piauí avançou, em assistência à saúde mental, nos últimos anos? Edna de Melo – O maior avanço que temos, nesse primeiro ano de gerência, são os 14 Caps que estão funcionando. É um êxito excepcional, decorrente do apoio incondicional do Governo do Estado, em parceria com o Governo Federal. É uma vantagem muito grande, porque partimos praticamente do zero. Quando assumimos, havia apenas o de Uruçuí, que não funcionava em sua plenitude. Demos esse salto. Vale dizer que o número de Caps se altera constantemente, porque continuamos crescendo. Conseguimos fazer com que os gestores se sensibilizassem com a saúde mental e inovassem a assistência em seus territórios. Portal – O que mudou? Edna de Melo – Temos, hoje, menos usuários que se deslocam, mais usuários que se tratam próximos de suas famílias, mais usuários que se tratam durante um turno e no outro estão com suas famílias, porque estão sendo tratados mais perto de casa. São ganhos reais que temos conseguido. A abertura dos Caps é motivo de muita satisfação para nós, porque sabemos o peso e a importância deles na assistência à saúde mental. Portal – Quantos Caps estarão funcionando até o final do ano? Edna de Melo – Gostaríamos de fechar o ano com 20 unidades. Mas, tenho preocupação não só em abrir Caps, mas também com o aprimoramento do serviço. Para fazer aprimoramento é preciso primeiro abrir o serviço, para irmos ajustando até chegarmos às condições ideais de funcionamento. Se, ao final do ano, tivermos 20 Caps, com todos os seus problemas equacionados, teremos dado um salto qualificativo. Temos outros dispositivos, como as residências, projeto pioneiro, um programa público. O Estado tomou essa frente e desbravou na questão da residência. Pegou os usuários que moravam no Hospital Areolino de Abreu, sem perspectiva de sair daquele espaço, sem família, entregue ao abandono. O Estado investiu, com apoio do com o Ministério da Saúde. Retiramos esses pacientes crônicos e hoje eles estão inseridos na sociedade. Outra iniciativa, que estamos iniciando agora, é a abertura de leitos psiquiátricos nos hospitais gerais. Temos uma portaria que nos dá respaldo, a 224, que diz que um hospital geral deve destinar 10% de seus leitos para a psiquiatria. Se conseguirmos isso, ainda que a longo prazo, será ótimo, porque estaremos banindo um inimigo forte, o preconceito e o estigma. Muitas vezes isso depõe contra o tratamento. O usuário às vezes abandona ou não procura tratamento porque ficará com o rótulo de ser louco, porque procurou um hospital psiquiátrico. O estigma existe e é cultural. Não iremos acabar com isso com um passe de mágica. Se o paciente se tratar em um hospital geral, daremos a ele a possibilidade de se desvencilhar do estigma. Apesar de acharmos que a sociedade está conosco, temos que banir esse preconceito ferrenho. Hoje já discutimos a saúde mental de uma forma mais prazerosa, as pessoas têm se aberto mais, mas ainda existe. O usuário introjeta o estigma e isso repercute negativamente no momento de procurar tratamento. Muitos até procuram um clínico geral, com medo do psiquiatra, para não ser identificado como loucos ou portadores de transtornos mentais. Já temos dois hospitais que sinalizaram positivamente, o Hospital do Mocambinho, do Estado, e o Hospital Universitário, da UFPI. O HU tem uma proposta interessante de abrir leitos para dependentes químicos. Estamos em parceria para compormos uma equipe, porque drogas são também um problema de saúde pública. Portal – O Piauí tem conseguido acompanhar a política federal quanto à saúde mental? Edna de Melo – Eu diria que temos conseguido ajustar o ritmo da reforma psiquiátrica, que é nacional, ao nosso Estado. O Piauí, em momento nenhum, desmerece ou está aquém dessa política maior. De um ano para cá, conseguimos, felizmente, com o apoio dos parceiros, dar um salto qualitativo. Muito ainda há o que fazer, porque pensar em saúde mental, para nós, é pensar grande, é pensar muito, é pensar além. Não pretendemos, com nossa passagem pela Gerência, esgotar o assunto e dizer que teremos feito tudo. O saber é inacabado e outros encaminhamentos serão destinados à saúde mental. Outros aprimoramentos, através de novas leis, deverão se somar a esse trabalho. Com certeza, essas iniciativas mediarão futuras ações que beneficiarão os usuários. Quero enfatizar que, no momento, todos os dispositivos federais que dizem respeito à reforma psiquiátrica têm a adesão do Piauí, que está junto e tem cumprido sua responsabilidade social. A questão do aprimoramento é uma questão de tempo. Estamos correndo para que o nosso Estado se torne modelo em assistência à saúde psiquiátrica. Portal – Se reformas estão em curso, como adequar a qualificação de pessoal? Edna de Melo – Outro projeto interessante que temos é o de capacitação, em parceria com a UFPI, aprovado recentemente. Esse projeto está tramitando no Ministério da Saúde, para liberação de recursos, e permitirá a capacitação de 1.881 técnicos. Como houve mudança na assistência, temos preocupação em qualificar ou reciclar os profissionais, dentro dessa nova perspectiva. Nosso programa foi iniciativa da nossa Gerência, em parceria com a UFPI e recursos federais. Juntamente com o pólo de educação permanente, da Sesapi, conseguimos que o projeto fosse aprovado. Iniciaremos, em breve, a implementação no Estado, capacitando profissionais de toda a rede de saúde, inclusive do Programa Saúde da Família e agentes comunitários de saúde. Acreditamos que, através da capacitação, contribuiremos para que esses serviços efetivamente funcionem, dando respostas dentro da melhoria da qualidade de vida. É um projeto grande e soube da feliz notícia de que o incentivo financeiro cairá na conta da UFPI, a qualquer momento. A UFPI vai gerenciar os recursos, porque é uma entidade educacional, exigência da portaria. Com o serviço, cobriremos todo o Estado, onde haja ou não serviço de saúde mental. Portal – O que é o Programa Residência Terapêutica? Edna de Melo – É um programa federal, implantado no Piauí em parceria com o Governo Estadual, com o objetivo retirar pacientes de longa permanência, alguns de 20 a 30 anos, de hospitais psiquiátricos e colocá-los em espaço de moradia. São pessoas cujos vínculos sociais e familiares estão completamente estremecidos, ou não existem, porque na maioria das vezes não têm esse suporte. O programa preconiza tirar essas pessoas em situação de abandono e colocá-los nessas casas, custeadas pelo Estado com apoio federal, para que elas possam finalmente ter moradia e espaço saudável para tratamento e recuperação. Portal – É uma forma de inclusão social? Edna de Melo – O programa, inaugurado no dia 7 de março, pelo Estado, consiste em três residências, cada uma com seis moradores, usuários de saúde mental egressos do Areolino de Abreu, escolhido por ser o hospital psiquiátrico de referência do Estado, enquanto de natureza pública. O trabalho que será feito, a partir desse deslocamento, é de reinserção. Nessas casas, eles vão ser trabalhados em relação à autonomia da vida diária, vão aprender a ter auto-cuidado, serão inseridos gradualmente nos espaços educacionais. Já temos, desses 18 moradores, vários que estão no mercado de trabalho. Temos vendedor de peixe, manicure, lavadeira. Estamos conseguindo, através das coordenações de residências, ganhos significativos. A maioria desses usuários está matriculada regularmente no ensino escolar. Temos conseguido, felizmente, esse processo de reinserção social, que é lento, mas perfeitamente possível. Acreditamos e investimos na área tendo certeza de que teremos bons frutos. Portal – A que se deve essa mudança de postura no tratamento psiquiátrico? Edna de Melo – Essa mudança começou a partir da reforma psiquiátrica, consolidada em 2001 devido a um respaldo da legislação. A Lei 10.216 redireciona o modelo assistencial para outras formas de tratar pacientes mentais. Ela refletiu no modelo até então existente, centrado no hospital psiquiátrico, e passou a direcionar outras vias de tratamento, dando ao usuário poder de múltipla escolha no momento do tratamento, o que é interessante. O usuário de saúde mental, hoje, tem auxílios como o Caps, o Residência Terapêutica e o Programa Volta para Casa, um benefício assistencial de valor pecuniário de R$ 240,00 ao mês, destinado a cada um dos residentes, para provimento de necessidades básicas como roupa, lazer, ajuda à família e necessidades diária. Isso reforça a auto-estima deles. Esse redirecionamento se consolidou no Estado a partir dessa lei. Para nós, essa lei tem um marco. Apesar de a reforma psiquiátrica vir sendo trabalhado desde 1978, através de luta antimanicomial e outros debates sociais, só a partir da lei pudemos efetivar esses novos efetivos, não só no Estado, mas no Brasil inteiro, porque essa reforma não é local. Portal – Todos os pacientes psiquiátricos podem ser alvos dessa mudança de atitude? Edna de Melo – Todos. Todos os diagnósticos estão tendo cobertura nos Caps, nas residências, nos ambulatórios, nos próprios hospitais psiquiátricos, que têm se mantido e têm cumprindo função social. É importante destacar o trabalho de equipe. O que tem sido feito é um redirecionamento da assistência, vendo o que pode melhorar no que já existe e no que podemos inovar, nessa nova política. Porque temos o respaldo da lei, que nos favorece. Temos outras leis. A residência terapêutica, por exemplo, é apoiada pela Portaria 106, de 2000. O Caps tem a Portaria 336, de 2001. Vamos construindo essa política no Estado, que vai universalizar a condição de acesso e, principalmente, democratizar as formas do exercício da cidadania. Agora, o próprio paciente tem a condição de optar pela forma de tratamento. Temos os hospitais de dia, formas inovadoras. São espaços de tratamento, onde o usuário permanece o dia e à noite, volta para o convívio familiar. Na psiquiatria, tivemos uma evolução. Partimos de uma assistência centralizada nos hospitais psiquiátricos, com internação de 24 horas, para o hospital dia, em 1994, com atendimento parcial. Agora, temos os tratamentos nos Caps, nos quais os usuários permanecem um único turno ou os dois, conforme a conveniência do seu tratamento ou sua necessidade de estar atrelado ao serviço. O que conseguimos com esses ganhos é favorecer, a eles, o poder de múltipla escolha, assegurando o direito constitucional à saúde. Temos lutado por essa rede por sabermos da importância que ela tem para o usuário de saúde mental. Valorizamos todos os serviços que existem. Eles estão aí e podem coexistir. Partimos da perspectiva de que o usuário escolhe a melhor maneira de se tratar, o projeto terapêutico tem que ser individualizado e deve levar em conta a vontade do paciente, que pode fazer a melhor forma. Portal - Pacientes mentais podem saber o que é bom para eles? Edna de Melo – Algumas vezes, sim. E percebemos isso na resistência a alguma forma de tratamento e adesão a outra. Doença mental é cíclica, em certos momentos os pacientes são mais capazes. Não tem cura, mas tem controle. Percebemos que, na grande maioria das vezes, eles podem decidir. No caso de pacientes depressivos, por exemplo, que antes tinham como único tratamento a sistemática de 24 horas, podem ser inseridos nos Caps. Essa é uma das patologias leves. Nos outros casos, temos a família, um referencial importante. A família faz a opção. Sabemos que o vínculo que liga o usuário à família é maior do que o que liga o usuário ao técnico, porque existe o vínculo afetivo. Na impossibilidade do usuário fazer a sua escolha, a família estará optando pela melhor forma de tratamento para o seu familiar. Via de regra, funciona assim. Por Tom Lima, da CCOM